Quatro exemplos, quatro perfis, quatro armas da revolução silenciosa que os vinhos chilenos vêm promovendo com o resgate do antigo e o brilho do novo.
Há quem diga que se existe um povo que conhece pouco os seus próprios vinhos são os chilenos. Mais do que uma injustiça, é uma irreverente referência que os críticos fazem ao fato de que a maioria dos vinhos do país é feita para exportação. Mas o fato é que há expoentes que mostram duas coisas: uma é a qualidade fora das antigas curvas dos padrões de potências no nariz e de madeiras na boca – conquistadas por vinícolas novas que mostram os caminhos – e das antigas, que os seguem em novas iniciativas. Outra é a dificuldade de se encontrar os rótulos dessas vinícolas nas lojas de Santiago.
Novas terras, antigas uvas, técnicas inesperadas e perfis revolucionários estão por trás de uma revolução silenciosa. Ela vem conduzindo, aos poucos, uma mudança de perfil que altera cada vez mais a cara dos chilenos, que dão suas notas de audácia em seus rótulos, mas sem perder a ternura jamais. Parte dessa narrativa está em quatro rótulos emblemáticos, que mostram o quanto se renova na faixa de terra entre a cordilheira e as águas desse oceano vinífero, cada vez mais agitado, mas sempre Pacífico.
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Latitude e muita atitude.
Em tradução livre, o rótulo significa “o canto dos malucos”. Esse é o espírito de Pedro Parra, que passou a explorar áreas e terroirs inesperados – altitudes mais elevadas, latitudes mais baixas, exposição ao litoral – para rejuvenescer o vinho chileno, em iniciativa que batizou de “locuras”. E Locuras é exatamente o rótulo desse chardonnay de acidez espetacular, vibrante, pouquíssima madeira, produzida na área de Cachapoal, na região vinícola do Maule, em parceria com três outros enólogos incluindo o francês François Massoc, do qual é sócio em outra vinícola local, a Aristos.
É um vinho próprio para o aperitivo, mas é também bela companhia de sabores distintos e extremos como a delicadeza de um peixe de molho leve ou a força de um arenque defumado. Em janeiro desse ano, o Locura ganhou uma distinção maior do que qualquer dos prêmios que já recebeu: foi o “Vinho da Semana” no site da maior crítica de vinhos de todos os tempos, Jancis Robinson.
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Vik.
Equilíbrio, intensidade e delicadeza, aliados a um sabor profundo, aroma digno de um perfume real e longos minutos de infinita persistência. Essas são as características do Vik, um vinho que, como o Clos des Fous, vem de uma filosofia inteligente na produção de vinhos modernos. E tão fora da curva quanto. Afinal, qual vinícola produziria um único tipo de vinho, sem preocupações com crianzas e reservas? É o caso desta vinícola de Millahue, no vale do Maule, a uma hora de Santiago, rumo à Cordillera.
Sim, um único tipo de vinho, sem brancos, só um exemplar de tinto, com uma gota de syrah e outra de carmenère no corte bordalês (merlot, cabernet sauvignon e franc), de uvas colhidas e escolhidas em vários estágios de maturação para o que chamam de “precisão na vinicultura”. Na safra mais recente (2011), que chega ao Brasil pela importadora World Wine, foram três semanas somente para o cabernet sauvignon. Até no rótulo o Vik é um vinho moderno, com o design da marca restrito a seis linhas, mostrando o caminho da retidão que o vinho chileno segue.
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A “herança” e o Herencia
Há vinhos que vão da boca ao estômago. Outros, ao âmago. Ali, fazem seus carinhos à alma. Mesmo as mais sombrias, se julgarmos pelo manto escuro desse rótulo, o maior das vinhas Santa Carolina. Ou ainda pela profundidade dos aromas e da persistência desse vinho da região de Peumo, a duas horas de carro ao sul de Santiago. Herencia é o espanhol para “herança”.
Há mais do que herança por trás desse rótulo de desenho clássico. Na realidade, é um dos depoimentos da antiga memória da vinicultura chilena, de cortes e plantas artesanais, de aromas de cravos e ervas discretas no nariz, de frutas bem maduras na boca. É o resumo de uma história de 140 anos de existência da vinícola. Por conta de rótulos como o Herência, a festa tem toque americano, com o título Winery of the Year 2015.
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Um Super Chileno
A referência no título dessa nota vem do espírito supertoscano do Almaviva, o já clássico experimento da casa Concha y Toro com a Baron Philippe de Rotschild. A experiência com o Almaviva é parecida, mas dessa vez realizada no Alto Maipo, onde foi encontrado o solo que julgaram o mais adequado do Chile para o autêntico corte bordalês. Como nos rebeldes toscanos, o corte bordalês típico, com eventuais pinceladas de carmenère e de petit-verdot. Seria esse um super-chileno?´”O caminho é o do grande vinho”, diz Michel Friou, enólogo da vinícola.
Em comum a todos eles, a elegância, a estrutura e, especialmente, a acidez e os taninos vibrantes, fatores da longevidade. E de identidade, como repara Friou, naquele que considera a filosofia do Almaviva: “Ou você faz um grande vinho ou o faz para exportação. Escolhemos não desfigurar o nosso vinho para atender às exigências de mercado”, costuma dizer. O resultado está em safras como 2005, 2007 e 2009, que chegaram ao mercado medalhadas por notas 95, 93 e 96, respectivamente, segundo Wine Spectator. A pontuação levada em conta foi a do crítico Robert Parker, um vetor de bons investimentos para o mercado futuro dos bons copos. Estes, inclusive.
Pedro Mello e Souza