Se país não é sinônimo de nação, taí a Itália para nos confirmar essa aparente contradição. Lá, cada cozinha é uma pátria. As cidades são divididas em estilos e cada bairro pode cultivar o seu tipo particular de pão com orgulho de quem empunha a bandeira nacional. O cozinheiro de uma região ri de como o seu colega de outra cidade prepara o que ambos consideram uma especialidade nativa, das simples massas aos seus mais elaborados molhos. Quem ganha com isso é o visitante, que passa a ter, em cada pelotão do seu grande exército gastronômico, do garçom ao chefe medalhado, um cabo eleitoral de seu orgulho culinário.
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Reunidos no fim de um jantar, na varanda do restaurante L’Incontro, no refinado Savoy Hotel, no epicentro cultural de Florença, os chefes e maîtres se divertiam com o relato de um grupo de brasileiros a respeito dos formatos dos tiramisus que temos aqui. A conversa veio à mesa após a degustação de uma sobremesa untuosa, cremosa, intensa, servida em uma taça de sorvete – na aparência e no paladar, inteiramente diferente daquela que tivemos a desgraça de nos habituar.
A refeição foi de uma simplicidade inesperada, por se tratar de uma casa que, apesar de nova, já conta com sua primeira estrela do Michelin – a incidência dos estilos contemporâneos no ranking do guia chega a ser irritante. Mas foram carpaccios, lulas à dorê e saladas de um admirável culatello. No prato principal, um generosíssimo peixe-espada alla griglia. Grande, mas que se desmanchava na boca. Mais do que no preparo delicado de cada prato, o orgulho da equipe se revelava na explicação sobre cada ingrediente, do tratamento dos legumes orgânicos ao transporte de peixes, passando pela origem e a denominação dos pães, da manteiga, da origem do boi do carpaccio e do porco do culatello.
O patriotismo à mesa tembém estava no bar da casa, um lounge que entra no Savoy Hotel, pérola sofisticada da Rocco Collection, que disseca, já no cardápio, cada item que compõe uma enorme seleção de martinis. Nativismos à parte, italiano ama martini.
Quanto mais simples o restaurante, mais firme é a defesa da gastronomia local. É o caso da Trattoria Buzzino, uma das diversas casas familiares que atendem aos grupos que saem da Galeria delle Uffizi. Cioso de sua cozinha, o pai da casa, Sr. Giuseppe, ignorava solenemente as tentativas de mudanças nos pratos. |
“Ecco no è Disney. Ecco è Firenze”, exclamava para uma mesa de coreanos. Assim, vieram risotos de frutos do mar, massas com funghi e uma autêntica bistecca, um vertiginoso corte de contrafilé, que ultrapassava a circunferência do prato.
À noite, as estrelas voltam a brilhar e reinicia-se a parada do orgulho gastronômico. E que orgulho! No Relais Santa Croce, duas atrações: o Ghelfi e Ghibellini e o Enoteca Pinchiorri. No primeiro, o frescor de massas, frutos do mar (especialmente o camarão) e legumes como as abobrinhas e os tomates fazem jus ao estilo do hotel, um monumento que ainda conserva a antiga sala de música do tempo dos Médici e as estruturas de candelabros desenhadas por pupilis de Leonardo da Vinci. No segundo, a fama de melhor restaurante da cidade, que lhe conferiu uma independência que pegou o repórter no contrapé: estava fechada para as férias de verão.
Em Roma, três grandes sugestões para a agenda do gourmet estão bem próximas à mítica Piazza di Spagna: os restaurantes Imago, o Il Palazzetto e o Jardin de Russie. Os dois primeiros são de autoria de uma das figuras mais proeminentes da culinária romana, o empresário Roberto Wirth. Proprietário do Hassler Hotel, ele concedeu ao Imago, no alto do belo prédio do século XIX, uma das maiores vistas do mundo: Roma ao entardecer. O menu, inspiração do chef Francesco Aspreda destacou delicadezas como a lasanha de polvo, o pombo assado (à perfeição) com legumes, uma emulsão de leite de búfala com frutas secas e uma paleta de chocolates milésimés que justificam a estrela que acaba de ganhar no Michelin.
Amante dos bons rótulos, Wirth é fundador e presidente da Academia Romana do Vinho e ainda recuperou um pequeno palácio do século XVI, também na Piazza di Spagna, para transformá-lo no Il Palazzetto, um pequeno hotel de quatro quartos inteiramente dedicados ao vinho, com |
direito a adegas, salas para cursos e degustações e dois restaurantes, um deles no terraço, com vista para a praça. No cardápio, vale à pena experimentar a sua versão pós-moderna do spaghetti alla carbonara, apresentado em forma de novelo, e a seleção de frutos do mar, com lulas, camarões-tigre ceviche e um acompanhamento que está na moda em toda a Itália: as algas.
O Jardin de Russie é o ícone gastronômico do Hotel de Russie, a antiga – e suntuosa, e chiquérrima – pousada de embaixadores dos czares russos. O destaque da propriedade é o seu jardim, que recebe o restaurante e se prolonga por uma escadaria que pede por uma caminhada digestiva. O cardápio, detentor de duas estrelas do Michelin, está a cargo do chef Fulvio Pierangelini, anunciado como temperamental, mas autor de alguns dos pratos inesquecíveis para um gourmet qualificado: as vieiras refogadas com chicória, o sanpietro |
(o autêntico, não essa triste tilápia que se debate em nossos pratos) e um mil-folhas de peras, todos de se dobrar o joelho.
Nesse, como em praticamente todos os casos, um dos poucos elementos que parece unir a Itália à mesa: os pinots, noir e grigio, do Trentino. Com essa, Garibaldi não contava…
Pedro de Mello e Souza viajou a convite da Leading Hotels e da British Airways.