O guia Gambero Rosso é o equivalente italiano do Michelin. Rigoroso, definitivo, surpreendente, criativo e um dos que mais atentam para o surgimento – ou o desaparecimento – de tendências. Seus jurados são conhecidos como inspetori. Um deles, o romano Nicola Massa, mora no Brasil e, entre as viagens que faz frequentemente à Itália ou pelo Brasil – é também embaixador de vinhos da Toscana e da Sicília -, ele concedeu esta entrevista exclusiva para Eatin’Out. Mas o próprio entrevistado avisa: a expressão inspetor pode não ser adequada. “Há prova, não inspeção. E buscamos acertos, não erros”, revela, resumindo em uma frase o objetivo de sua função.
Quais os primeiros passos na gastronomia?
Comecei cedo, por volta dos 10 anos. Era filho único e com os pais trabalhadores muitas vezes ficava em casa sozinho, e morando num condomínio na cidade de Roma, convidava amigos à tarde ou à noite para oferecer comidas que cozinhava, geralmente, massas obviamente. Meu primeiro livro de receitas minha avó napolitana me deu: Talismano della Felicità, um grande clássico na Itália. Quando tinha 16 anos, em vez de ir à boate, saía à noite para jantar com um amigo em restaurantes de alto nível. Lembro, ainda, a cara dos donos desses restaurantes, vendo aqueles dois garotos jantando ali. Esta situação era bem divertida.
E a entrada para o Gambero Rosso?
Foi tudo por acaso. Com a idade de 18 anos, comecei frequentar uma histórica enoteca de Roma, Il Goccetto. Naquela época, ouvia em silêncio e com curiosidade as histórias de quem era mais velho e ficava bebendo frequentemente no balcão, aprendi muitas coisas de vinho e comida. No Goccetto tinha sempre um grupo de jornalistas e amantes da gastronomia. No início foram eles que me convidaram pra rodar um pouco a Itália e visitar restaurantes e vinícolas. Depois de alguns anos, um deles, o jornalista Alessandro Bocchetti, hoje um dos meus grandes amigos, me fez a proposta para começar a colaborar e escrever para os dois guias, restaurantes e vinhos, do Gambero Rosso. Comecei, então, a rodar a Itália sozinho, inicialmente comendo só nos restaurantes mais simples e depois de dois anos iniciei também visitas a locais de nível mais alto, aqueles que têm possibilidades de entrar e fazer parte dos ‘tre forchette’, cotação máxima do guia
E no guia dos vinhos?
Na época, comecei também com as degustações do guia Vini d’Italia, que ainda faço mesmo morando no Brasil. A cada ano, no mês de julho, volto à Itália para provar e avaliar os vinhos pelo guia. Nesta função, é fundamental ser curioso, se atualizar e aprender. Acho que não há nada mais importante do que a experiência, a prática e a curiosidade de aprender neste campo, cursos são bem importantes para aprender a técnica, mas se você não bebe e come com curiosidade sempre, não vai dar certo.
Que tipo de conhecimento os inspetores dos guias devem ter?
Sempre achei que a palavra inspetor no caso dos restaurantes e degustador no caso dos vinhos não seja adequada. Ou seja, comer e beber são atos de prazer e felicidade, claro que quem avalia tem de ter uma atenção particular durante o ato de provar, não para encontrar falhas mas para avaliar uma história. Porque pratos e vinhos são na verdade resultados da história do homem que está por atrás e que os realizou. Então, gosto de chamar a nossa figura profissional de provadores e acho também que desta forma aproximamos mais as outras pessoas de nosso mundo que sempre é visto como algo elitista e complicado. Nós provamos simplesmente comida e vinho com o mesmo prazer dos amantes, só que precisamos fazê-lo sempre com uma atenção maior porque temos um compromisso de trabalho.
E como isso é aproveitado?
Os provadores de restaurantes e de vinho devem conhecer as bases da gastronomia e da enologia, no caso específico, a italiana. Isto pode acontecer de duas formas. Na Itália existem cursos de jornalismo gastronômico que são praticamente master classes pós-graduação, onde se aprende a escrever sobre gastronomia para qualquer meio de imprensa. E claro, são válidos para participar e fazer os guias. Ou também a experiência pessoal, se tiver tido a sorte de ter comido e com curiosidade em muitos restaurantes na vida, ter estudado em livros de história e produtos gastronômicos, e então ter formado uma cultura própria, pessoal, que possa servir justamente para avaliar restaurantes. Pelo guia dos vinhos é basicamente a mesma coisa, ou seja, não é obrigatório ser sommellier para fazer parte das degustações, pode-se participar tendo formado sua cultura pessoal, construída ao longo do tempo. Repito, o importante é a curiosidade e a vontade de aprender, enfim saber do que se está falando. É a prática do dia a dia, ou seja, beber e comer com interesse sempre.
Quais os itens que o Gambero Rosso leva em conta na avaliação de um restaurante?
No caso específico do Gambero Rosso as avaliações dos restaurantes são feitas numericamente com quatros critérios: cozinha, serviço, adega e os bônus. O da cozinha é o mais importante de todos e aqui se avalia só a qualidade dos pratos em si, incluindo como critérios a qualidade e sazonalidade dos produtos utilizados, a técnica, a apresentação e o sabor. Este critério vai de 1 a 60 pontos. O serviço é avaliado através da qualidade do mesmo, pensando no ambiente e no serviço de sala como fatores determinantes. Este vai de 1 a 20. No da adega se avalia claramente a carta de vinhos, aqui também o máximo de pontos é 20 para se chegar a um total geral máximo de 100 pontos. Os bônus vão de 1 a 3 no caso de o provador considerar que existe no restaurante um fator importante e único a ser relatado e pontuado. Nenhum restaurante nunca chegou a 100 pontos. Vale a pena dizer que este critério de avaliação é válido pela categoria dos restaurantes, mas existe no guia uma outra categoria que na minha opinião é bem importante, ainda mais quando se fala da Itália: as trattorias. A cultura italiana de comida é popular, feita de pratos simples realizados com grandes produtos. Chegamos a ter grandes restaurantes na Itália graças ao trabalho de grandes chefs de cozinha, mas a trattoria permanece como a espinha dorsal da nossa cultura na mesa. Aqui, as avaliações são mais simples e vão de zero gamberi até três gamberi que é o máximo reconhecimento nacional quando se fala de trattoria. Neste momento, acho que existem mais ou menos 18 delas com este significativo reconhecimento.
Quantos restaurantes você já visitou, aproximadamente?
Difícil de lembrar. Se fosse só pelos avaliados, diria que quando morava na Itália visitava 60 restaurantes por ano pelo guia e fiz isto por 7 anos. Então, 420. Agora que não moro na Itália não dá mais para fazer isso, não tenho tempo, mas continuo visitando e comentando restaurantes no mundo pelo guia do Identità Golose, um network que inclui o mais importante congresso de gastronomia italiano e neste guia são uns 20 por ano há 3 anos. Então, 60. Mas se tivesse de lembrar todas as minhas refeições de certo nível, em que fui para desfrutar, aprender e formar minha opinião, diria que posso ter comido em mais de 3 mil restaurantes.
E quais ainda pretende visitar?
Realmente não tenho uma lista que pretenda visitar, com certeza tenho alguns países ou cidades que gostaria ir para comer e conhecer a gastronomia local. Por exemplo, o Japão onde nunca fui e gostaria muito conhecer ou a China, incluindo uma etapa a Hong Kong. O que me desperta mais a atenção nesse momento são os restaurantes de produtos, de comida autêntica. Por autêntico, não entendo necessariamente antiga e tradicional. Vejo a contemporaneidade, quando bem interpretada, como uma tradição revisitada, assim aproveito bastante também alguns restaurantes chamados hoje de contemporâneos. Não me ponho limites, o único que me ponho é de não encontrar mentira no prato e que seja uma comida boa. Não existe uma diferença entre tradição e contemporâneo, mas existe muita diferença entre comida boa e ruim.