Um perfil de Luciana Lancelotti, a jurada, jornalista, fotógrafa, editora, enfim, da incansável autoridade em paladar que, como poucos gourmets, já deu várias voltas pelo mundo do paladar.
O mundo de sabores não exige apenas o deslocamento das viagens: há a habilidade para planejá-las, a informação para encontrá-las e, muitas vezes, a cultura para desvendá-las e a serenidade para encará-las. No caso da jornalista Luciana Lancelotti, ainda há dois itens: o bom gosto para o apreciar e o olho para o registrar – e usar todas essas imagens para dar forma ao seu adorável alter ego, Gourmet Viajante, uma onipresença na internet com fotos que deram tempero de seriedade do instagram ao Facebook. Mas a experiência também explica o apetite de Luciana, que foi crítica de gastronomia da Playboy e integra o corpo de jurados da Folha, de São Paulo, da Veja São Paulo e do megaconcurso 50 Best Restaurants. No momento em que assumia a liderança da nova revista Wine e dá os últimos retoques para a reedição do seu blog, ela concedeu esta entrevista para a Eatin’Out.
por Pedro Mello e Souza
Quem surgiu primeiro, a gourmet ou a viajante?
A gourmet, certamente. Tenho a sorte de ter crescido em uma família que ama cozinhar, pai, mãe, avós… Lembro-me de, aos 8 anos de idade, ter preparado escondida um tal “bolo campineiro”, que encontrei no emblemático livro da Dona Benta, com a ajuda de uma de minhas irmãs (sou a mais velha). Levei uma bronca feia da minha mãe, mas a história se transformou em um verdadeiro marco no meu histórico culinário (risos).
Comia sem restrições quando era criança?
Sim, adorava jiló e língua, algo em que nem eu acredito quando olho para trás, porque não são os tipos de pratos que atraem uma criança… Depois, por volta dos 16, 17, resolvi não comer nenhum tipo de carne, e foi assim durante seis meses. E por 15 anos comi apenas carne branca. Como crítica, voltei a comer carne vermelha, mas ainda assim como muito pouco, uma vez por semana e olhe lá, às vezes nem isso.
No prato, qual foi a primeira grande surpresa?
Foi, na verdade, uma má surpresa. Meu pai me apresentou o sashimi, que adorei. Lembro-me de ter me deliciado com o atum cru, surpreendentemente bom, derretendo na boca. Mas foi só ele descuidar e não deu outra: coloquei na boca a bolinha verde que chamava a atenção no prato. Aquela overdose de wasabi me fez chorar.
E a mais recente?
A tarte au sucre do Québec, Canadá, onde estive há menos de dois meses. É uma sobremesa tradicional, uma torta de açúcar feita pelas avós, há restaurantes que preparam a versão gourmet, mas gostei mesmo foi das rústicas, de sabor e aparência aconchegantes. Muitos dos pratos que me emocionam não são preparados por chefs estrelados. Se bem que as ostras empanadas com pérolas de tapioca do Alex Atala são absurdamente deliciosas. Ainda não provei as Oyster and Pearls, do Thomas Keller (Per Se e French Laundry), que provavelmente inspiraram o prato do D.O.M., mas imagino que sejam tão boas quanto. No Noma, em Copenhague, comi camarões vivos, sem fazer caras e bocas, aceitando a proposta do chef, de provocação, mas também de oferecer o ingrediente em seu máximo frescor. Não me dá água na boca quando recordo, mas gosto do fato de não ter frescuras com relação a esse tipo de desafio ou estímulo gastronômico.
Suas fotos são famosas. Já ganhou algum prêmio por elas?
Minhas fotos não são famosas, mas fico feliz com os elogios que recebo por elas. Nunca as inscrevi em nenhum concurso ou algo parecido. Recebi, sim, o prêmio da Comissão Europeia de Turismo pela melhor matéria publicada em revista no ano de 2011, “Portugal para Comer e Viver”, na Top Destinos, destacando roteiros gastronômicos nas cidades do Porto e de Lisboa. Esse prêmio me rendeu uma viagem percorrendo Hungria, Eslováquia, Áustria, República Tcheca e Alemanha. Foi gratificante.
No mundo da gastronomia, há mais amigos ou inimigos? O brasileiro é unido em torno da mesa profissional?
Entre jornalistas, de forma geral, o tratamento é cordial e respeitoso. Entre os chefs, a gente fica sabendo às vezes de algum mal-entendido, alguns até comentam em off com a gente sobre outros colegas. Mas nunca publico esse tipo de informação. Já ouvi de um grande chef uma declaração sobre outro que daria frase de revista semanal. Mas eu seria uma irresponsável se publicasse. A verdade é que nesse momento, em que a gastronomia brasileira tem sobre si muitos holofotes, é imprescindível que a classe esteja unida. Muitos chefs dizem que o Alex Atala se autopromove, que é o rei do marketing e tal. Mas ele é a peça-chave desse momento importante e atualmente representa, como ninguém, nossa gastronomia mundo afora. Imagine o que é, para um restaurante da América do Sul, se manter por tantos anos entre os dez melhores do mundo. Só autopromoção não segura essa onda. É preciso ter competência também.
Qual dos dois – amigo ou inimigo – um crítico coleciona mais?
Depende da forma como aborda o restaurante. Quando comecei a fazer críticas para a Playboy, ganhei a liberdade de escrever da forma que achasse melhor. Então optamos por limar os restaurantes que não valiam a pena. Não por eu ser boazinha, mas porque restaurante ruim fecha por si só, nenhum crítico fecha, sozinho, um estabelecimento. Se o lugar é legal, com alguns senões, faz-se a crítica de forma construtiva, sem ironias. Mas se o lugar não é bom, pra que eu vou perder tempo escrevendo a respeito e o leitor vai perder tempo lendo e, pior, indo até lá? Você pode argumentar dizendo que alertar sobre a má qualidade de um restaurante é prestar um serviço, mas prefiro insistir em um que valha o investimento. Com isso, acredito que não tenha colecionado inimigos. Por outro lado, trato de ter uma relação ética e cordial com os chefs e donos de restaurante, mas sempre me policio para não ultrapassar a linha. Me causa certo desconforto, por exemplo, observar alguns rompantes de intimidade entre jornalistas e chefs, em redes sociais como o Instagram.
Alguém já ficou histérico com alguma crítica sua?
Histérico, não, mas houve um fato engraçado. Uma vez uma assessora de imprensa de um restaurante mandou um e-mail dizendo que a crítica estava ótima, mas que o dono do estabelecimento mandou um recado: “avise a ela que a sobremesa não leva azeite, como publicou”. Minha vontade, na hora, foi dar uma resposta irônica, mas respirei fundo e respondi descrevendo a receita, tradicional italiana, que levava, sim, azeite. E tive o insight de pedir para ela olhar no cardápio a descrição. Não deu outra: o azeite estava lá. Ela pediu desculpas. E o dono precisa conhecer melhor os pratos servidos em seu restaurante. É o mínimo, aliás, que se espera de um restaurateur comprometido.
Quais as dicas para quem quer fazer fotos de gastronomia para quem inicia?
Acho que a luz natural é uma boa aliada para uma boa foto. Quando nenhum ângulo favorece o prato, fotografe de cima. Aliás, ângulo é minha palavra-chave para fotografar. Sempre busco um diferente. Se você observar as fotos das décadas de 1970-1980, vai ver tomadas abertas, a mesa inteira posta, cheia de pratos. Hoje, a lente quase come o prato, de tão próxima. Na época em que trabalhava na TV, uma amiga querida, a repórter cinematográfica Maria Cândida Mendes, me ensinou: para mostrar direito a comida, é preciso devorá-la com a lente. Eu nunca esqueci isso.
Fora do Brasil, quais os restaurantes que batem no seu coração?
É muito fácil e óbvio falar sobre os estrelados, então vou pulá-los. Adoro Les Cocottes, em Saint Germain-des-Prés, em Paris, um lugar onde não se podem fazer reservas, bem despojado, com pratos deliciosos e preços bárbaros. Também na capital francesa, essa onda da bistronomia tem lugares ótimos, como o próprio Le Camptoir, o Frenchie, o Spring e Le Baratin. Em Lisboa, adoro o Alma e sou apaixonada pelo bolo de chocolate da Landeau, na LX Factory. Os frutos do mar fresquíssimos da Cervejaria da Esquina também me fazem muito bem, assim como as porções do Cantinho do Avillez. Em Londres, gosto do Corner Room, do Nuno Mendes (também responsável pelo excelente Viajante, no mesmo hotel, mas que é estrelado, então vou pular. Em Buenos Aires é encantador o Florencio, escondido no andar térreo de um prédio na Recoleta, gosto também do Oviedo. E abro um sorriso saudoso quando me lembro das madeleines servidas quentinhas acompanhando o expresso no Café Boulud, em Nova York. Há muitos, muitos lugares que adoro e para onde amo retornar. Ah! Me esqueci de citar o Tia Alice, em Fátima, que traduz em emoção os sabores portugueses.
O seu prato inesquecível.
O polvo ensopado preparado pelo meu pai em ocasiões especiais. Desculpe, mas não encontrei, no mundo, nada parecido. Aquela textura, nunca. OK, lá vem a cena do Ratatouille à cabeça, uma combinação de recordações de infância, sabor e, sim, competência. Por isso mesmo, insuperável. Considere licença poética.
E o esquecível.
Tinha tudo para ser incrível. O almoço aconteceu em Bogotá, em um hotel mágico, Sofitel Santa Clara, onde já funcionou um convento, inspiração de Gabriel Garcia Marquez para o romance “Do Amor e Outros Demônios”. Estava tudo formidável até que, ao mastigar, descobri uma quantidade inacreditavelmente grande de anis. Aquele deslize do cozinheiro estragou o sabor do prato, até então delicioso, e chegou a me provocar náuseas. Tive de pedir licença, foi horrível. Daí pra frente, anis, nunca mais. Sim, a experiência foi inesquecível, mas o trauma foi tamanho que até hoje não consigo lembrar qual era o prato.
O que o seu médico acha de tudo isso?
Ainda bem que não tenho tendência para engordar, mas já fui avisada que daqui a alguns anos terei de me preocupar com os níveis de colesterol. Nessa história toda, uma coisa é certa: meu fígado é um verdadeiro herói.